O bosão W tem uma massa 0,1% superior ao previsto pela teoria e isso pode ser um problema – caso os novos resultados venham a ser confirmados por outra equipa de investigação.
Tiagos Ramalho / jornal Público
Há dez anos, quando finalmente “apanhámos” o bosão de Higgs, completámos também o modelo-padrão da física – que explicaria as partículas fundamentais e as forças entre elas. Agora, o acelerador de partículas do Fermilab (Estados Unidos) obteve novas medições da massa do bosão W que colocam a teoria do modelo-padrão em causa – por uma mera diferença de 0,1% em relação ao previsto na teoria.
A ciência está em constante evolução, tal como a precisão das medições que faz. Na última edição da na revista Science, centenas de investigadores de 12 países publicaram o resultado de dez anos – e esta diferença de 0,1% colocou afísica de novo no centro do debate científico. Esta é a medição com maior precisão do bosão W, que decorreu no acelerador Tevatron.
Os resultados publicados ainda terão de ser replicados, mas o debate já começou.
O que é então o bosão W? Apesar de o bosão mais famoso ser o de Higgs, o bosão W não é de somenos. É uma partícula fundamental da física que é responsável pela força nuclear fraca (uma das forças fundamentais da natureza), que permite que as partículas se transformem umas nas outras – por exemplo, que os protões se transformem em neutrões, e vice-versa, tornando também as partículas mais pesadas ou mais leves.
Agora, o papel do bosão W torna-se ainda mais relevante. “Se for confirmado o resultado, o modelo-padrão está errado e isso é uma grande notícia. Nós suspeitamos de que está errado, sabemos que não pode ser a última palavra, porque não descreve, por exemplo, a gravidade ou a matéria escura. Há uma série de problemas com o modelo-padrão, mas precisamos de ter uma evidência experimental de que está errado. Se outra equipa diferente confirmar esta medição, então é uma grande novidade para a física, porque seria a primeira prova do erro no modelo-padrão”, explica ao PÚBLICO Carlos Fiolhais, físico teórico. A diferença, medida em gigaelectrões-volt, não parece significativa: de 80.379 para 80.4335. Mas esta pequena discrepância, estes 0,1%, pode ser a primeira prova de uma falha no modelo-padrão. “O notável nesta medição é a precisão. Nunca houve uma medida tão precisa da massa desta partícula”, acrescenta Carlos Fiolhais.
Isto não significa, para já, o fim do modelo-padrão, até porque, como refere o físico teórico, pode indicar sobretudo que esta teoria está incompleta – e que haverá mais partículas e dados a acrescentar.
Que peças se mexem no modelo-padrão?
Vamos mergulhar na física de partículas? Tudo o que podemos ver e tocar está determinado por combinações diferentes de 17 partículas elementares – que pertencem a três grandes grupos: os quarks, os leptões e os bosões. “Distinguimos entre partículas de matéria e partículas de energia. Os bosões W são partículas de energia porque servem para materializar a força. Ao passo que os quarks, electrões e neutrinos são partículas de matéria”, explica Carlos Fiolhais.
Desde a primeira observação do bosão W, em 1983, que todas as medições da sua massa estão genericamente dentro da margem prevista pelo modelo-padrão da física de partículas.
Principalmente se atentarmos às últimas duas medições e às suas margens de erro, em 2012 e 2016. Apesar de os valores medidos já estarem fora dos valores previsto no modelo-padrão, a margem de erro ainda dava razão à teoria aceite. Até agora. A nova experiência, que ainda carece de comprovação por outra equipa, apresenta a margem de erro mais baixa (mais de metade do valor da última medição, feita no Laboratório Europeu de Física de Partículas ou CERN, na Suíça) e ao mesmo tempo um valor bastante acima do previsto.
E entramos agora no modelo-padrão e no motivo pelo qual esta medição pode traduzir- se numa revolução para a física de partículas. Desde os anos 70 que o modelo-padrão define que os quarks e os leptões compõem a matéria e os bosões transmitem as forças que conhecemos, como a força nuclear fraca, a força nuclear forte e o electromagnetismo. Ou seja, somando e subtraindo estas peças, damos origem aos átomos de todos os elementos conhecidos. Estas são as regras do jogo.
Ou eram. Porque o que este artigo científico nos diz é que pelo menos uma dessas 17 peças não segue as regras do jogo – o bosão W. O que pode significar isto? Em primeiro lugar, que o modelo-padrão está errado ou incompleto. Mas também pode abrir perspectivas para a existência de novas partículas ou forças que nos são desconhecidas.
Já existiam algumas indicações de que o modelo-padrão da física de partículas poderia estar incompleto. O facto de a gravidade não estar incluída, a existência de matéria escura ou mesmo a expansão cada vez mais acelerada do Universo já eram pistas fortes de que este enquadramento teórico não estava fechado. Esta pode ser mais uma indicação.
Em 2021, uma experiência científica também no laboratório Fermilab, mas noutro acelerador de partículas mais pequeno, mostrava que uma minúscula partícula – o muão – se comportava de maneira diferente ao preconizado pelo modelo-padrão.
Depois de dez anos de recolha, outros dez de análises
O acelerador de partículas do Fermilab, o Tevatron, está parado desde 2011, mas os dados recolhidos nos dez anos anteriores permitiram outra década dedicada à sua análise. A base de dados da equipa norte-americana compilou cerca de 450 biliões de colisões de partículas – choques de protões com antiprotões para criar o bosão W. “Para o tratamento de dados, a equipa fez uma codificação – mudaram os dados para que ninguém soubesse a proximidade ou a que segmento pertencia”, explica Carlos Fiolhais. “Portanto, tudo se resume a 80.4335”.
“Não sabemos se esta medição se vai confirmar ou não, mas não é a primeira vez na história da física que se muda o quadro teórico e a visão do mundo. A diferença entre Newton e Einstein em certas matérias é praticamente nula. E, no entanto, sabemos que a teoria de Einstein é melhor”, conclui, deixando as possibilidades em aberto até à confirmação ou não do resultado.
A física utiliza normalmente a medida de 5 sigma como um nível de significância estatística para algo contar como “descoberta”. E essa é precisamente a significância estatística da diferença entre o novo valor e o valor geralmente aceite.
Falta agora uma nova experiência, independente desta, que possa confirmar os resultados aqui apresentados – e que pode dar início a um novo capítulo para a física.
E a supersimetria?
Já se fala de supersimetria no mundo da física há muito tempo. A mais conhecida das teorias supersimétricas será a teoria das cordas. Enquanto o actual modelo-padrão se rege por simetrias, a suspeita é de que haja novas simetrias – e daí as teorias supersimétricas, que partem do modelo-padrão tentando preencher os espaços vazios que nele existem.
As teorias supersimétricas procuram suplantar um modelo-padrão incompleto, prevendo que cada partícula da teoria vigente tem um parceiro – o que duplicaria o número de partículas existentes. O que aconteceria na supersimetria seria que cada uma destas partículas teria uma outra partícula supersimétrica como parceira – o fotão terá o fotino, o bosão de Higgs, o higgsino.
Estas novas partículas, com as quais não contamos no modelo-padrão, também poderão ser as responsáveis por aumentar a massa medida do bosão W, por exemplo. Como refere Carlos Fiolhais, “as possibilidades são imensas”. “O que é que pode acontecer se se confirmar o resultado do bosão W? Pode existir uma descrição maior do que o modelo-padrão. E se houver novas partículas supersimétricas, o que pode acontecer é que o cálculo teórico esteja errado ou incompleto e terá de ser incorporada a nova evidência”, realça o físico.