Há, no Canadá, a sul de Toronto, uma cidade chamada London. Nessa cidade, vivem cerca de meio milhão de pessoas. E uma em particular, que não tem tempo nenhum, que passou a vida a viajar e a estudar para poder dizer isso sem recorrer a eufemismos, aceitou ter esta conversa. Carlo Rovelli é um dos maiores físicos teóricos do mundo. Escreveu aquele livro que questiona: “E Se o Tempo Não Existisse?” (Edições 70). Ou aquele outro que analisa “A Ordem do Tempo” (Objectiva). Escreveu uma série de livros a explicar como nasceu a Física moderna, de onde veio, que abismos enfrentou, como deu cada salto. Que teorias tiveram de morrer para outras nascerem.
Falar com Carlo Rovelli é contrariar as certezas que configuram o nosso mundo. Não, o tempo não existe em termos físicos. É relativo e relacional. Não, o espaço não é um contínuo. É granular e descontínuo. “Um átomo não é um átomo em si mesmo, é um modo de interação com o resto”, garante ele. “Um objeto nada mais é do que as suas interações.” Tudo interage com tudo. Até a mais ínfima partícula quântica.
(Entrevista de Luciana Leiderfarb / Expresso)
Nasceu em Verona, em 1956, graduou-se em Bolonha, doutorou-se em Pádua. Trabalhou em Roma, em Trieste, depois nos Estados Unidos — Universidade de Yale e de Pittsburgh —, depois França, agora o Canadá. Vive um pouco em vários lugares, tem um pequeno apartamento no Bairro Alto, em Lisboa, que adora. Tudo começou quando, ainda estudante de Física, descobriu tanto a teoria da relatividade geral como a mecânica quântica. E apaixonou-se por estas duas visões do mundo que, sendo ambas o centro da física moderna, não se cruzam. Conciliá-las pareceu-lhe um bom projeto de vida. Até que um dia o conseguiu. A teoria da gravidade quântica em laços [loop quantum gravity], hoje estudada por centenas de investigadores, representa esse passo de gigante. Só falta testá- la. É nisso que Rovelli está agora a trabalhar.
No ano passado, recolheu 60 assinaturas de cientistas e Prémios Nobel, para reduzir globalmente as despesas militares em 2% por ano. Hoje a NATO quer o contrário: aumentar 2% do PIB para a defesa. O que diz um cientista sobre a irracionalidade do mundo?
Obrigado por me colocar esta questão. Quando juntei as assinaturas, esta guerra não era expectável. E é chocante para nós, europeus, por ser mais próxima. Porém, em termos globais, a guerra tem sido uma constante nas últimas décadas, acarretando sempre um enorme desperdício de recursos. De uma perspetiva lógica, a espécie humana está a comportar-se como um grupo de amigos que partem numa caminhada e, em vez de se ajudarem, lutam entre si. Parece óbvio que se colaborassem em vez de se matarem, tudo seria mais fácil. A Humanidade aprendeu várias vezes esta lição. Agora temos problemas sérios que nos afetam a todos — a pandemia, a crise climática, a pobreza — e que podem ser resolvidos se tivermos recursos. O mundo é rico, não é pobre. Mas em vez de se usar a riqueza para o melhorar, usa-se para propósitos de dominação. Isto é irracional.
E imoral?
Também, como é, aliás, afirmado por líderes como o Dalai Lama, o Papa ou o secretário- geral da ONU. Em vez de colaborarmos, lutamos por ganância e por medo. O medo é um poderoso causador de danos. Aconteceu com a suspeita de armas de destruição maciça no Iraque e agora com o temor de que Putin chegue a tomar Lisboa. Os dois lados da guerra alimentam-se deste medo. Perante tal irracionalidade, faço o pouco que posso fazer.
Em março, no “Corriere della Sera”, escrevia: “Não podemos armar os pequenos para que continuem a guerra, por procuração, contra outras potências.”
O que está a acontecer na Ucrânia é um confronto entre grandes poderes. O Ocidente, com os EUA à cabeça, querem diminuir o poder russo. A Rússia quer afastar o poder ocidental. E o resultado é que pessoas inocentes morrem, dos dois lados.
A Ucrânia está a ser usada para que, de novo, os dois blocos se confrontem?
Sim. Mas durante a Guerra Fria havia razões ideológicas. Eram duas visões profundamente diferentes de como a Humanidade devia estar organizada. Agora nem sequer temos isso. Fala-se de democracia versus autoritarismo, mas esta é uma ideia vazia. O que realmente está a acontecer é um choque de poderes. A NATO, que se autodefine como uma aliança defensiva, tem vindo a atacar países fora dela e a ocupar território da antiga União Soviética. E a Rússia tem vindo a aceitar isso, até dizer: “Não, vocês estão demasiado perto.” Esse “não” é expresso com uma agressividade desmedida, que é a forma mais comum de os poderes se comportarem. É o modo como os EUA se comportaram com Cuba ou com qualquer outro país ocidental que se aproximasse do socialismo: ou invadir, ou fazer cair o governo. Há duas semanas, a Austrália ameaçou militarmente as Ilhas Salomão por se estarem a aproximar demasiado da China. São jogos de poder.
Não sou um político, sou um intelectual, e os intelectuais foram sempre pagos para pensar. É nosso dever gritar quando vemos algo estúpido a passar-se”.
Mas nesta guerra há um invasor e um invadido, não?
Claro que sim. Mas se pensar no início da I Guerra, os franceses diziam que os alemães eram bárbaros; os alemães diziam que os franceses eram o fim da civilização; então tinham de se matar uns aos outros. E está a ocorrer de novo. Receio que o século XXI esteja a caminhar nessa direção: usamos o outro como um pretexto para o confronto. Não sou um político, sou um intelectual, e os intelectuais foram sempre pagos para pensar. É nosso dever gritar quando vemos algo estúpido a passar-se. Por vezes resulta: quando houve a escalada nuclear, no fim da União Soviética, a Rússia e os EUA acabaram por fazer algo razoável, diminuindo a quantidade de armas nucleares em 90 por cento. Deste modo, reduziram-se os custos e o equilíbrio foi restaurado, com vantagens para todos.
Este longo processo foi iniciado por dois intelectuais — Einstein e Russell.
Nesse manifesto de 1955, há frases que poderíamos estar a escrever hoje, como: “A Humanidade encontra-se perante uma clara escolha: ou adquirimos um pouco de sensatez, ou iremos todos perecer.”
As duas Guerras Mundiais foram devastadoras. Entre uma e outra morreram 100 milhões de pessoas, o que é inacreditável. E após o fim da II Guerra Mundial surgiu a noção clara de não repetir o que aconteceu. As pessoas não queriam a guerra. Criaram-se instituições, como a ONU, para o evitar, e iniciou-se o processo de integração europeia. Depois veio a Guerra Fria, fortemente ideológica. E agora ambos os blocos viram de novo a oportunidade de dominar e suprimir quem se oponha ao seu poder. Esta é uma receita para o desastre, e no sentido mais cínico: porque o Ocidente já não tem poderes para vencer. Essa ideia de que somos os bons e o resto é mau, e que devemos confrontar militarmente quem está do outro lado tem de ser revista.
Mas, professor, quem começou a guerra desta vez foi a Rússia.
Totalmente. A guerra foi iniciada por Putin. Mas estamos nesta estranha situação: somos uma turma de crianças onde o João bate regularmente noutros rapazes, e um dia um outro miúdo, o Paulo, bate em alguém. João fica indignado e diz: “Como é que alguém pode bater assim?” E põe a turma toda a bater no Paulo. O Paulo quebrou uma regra que o João se fartou de quebrar. A Rússia atacou um país soberano, sem ser provocada, o que não deveria acontecer. Mas a NATO atacou o Afeganistão e o Iraque sem ser provocada. Bombardeou a Líbia e Sarajevo sem ser provocada. Então, a hipocrisia é grande. Estamos abalados por esta guerra, mas se considerarmos a guerra como um horror quando outros a fazem e uma triste necessidade quando nos convém, algo de errado se passa.
Recordemos que a Ucrânia não estava em paz antes desta invasão, havia uma guerra civil, instigada pela Rússia e pelos EUA. Trump foi impugnado por reter 400 milhões de dólares para apoio militar à Ucrânia, e para quê? Para alimentar a guerra civil.
De que forma o método científico, que é um método de colaboração e de saber quando dar um passo atrás, pode contribuir para os problemas do mundo?
A ciência não é um paraíso. Também lá temos idiotas. Mas os cientistas estão treinados para olhar para os problemas de uma perspetiva ampla, dar um passo atrás e ver à distância. Por outro lado, a ciência sempre foi um empreendimento transnacional, mesmo na Antiguidade. Para os cientistas sempre foi estúpido pensar em termos nacionais.
É o exemplo vivo disso.
Sim, passei a minha vida a mudar de país, em busca de conhecimento — que só adquirimos a ouvir os outros.
Segundo os seus livros, a ciência é menos a procura de uma verdade final do que o exercício da dúvida como modo de se seguir em frente, certo?
O que nos impede de aprender não são tanto as dificuldades, mas aceitar que temos ideias erradas. A revolução de Copérnico custou a assimilar porque implicou renunciar à ideia estabelecida de que a Terra não se mexe. Transformar essa noção representou um grande esforço. Então, a ciência tem a ver com questionar aquilo que dávamos por adquirido. E só o podemos fazer se admitirmos a parcialidade e a incerteza do nosso conhecimento. Nunca sabemos nada com certeza. Sabemos que muitas coisas são fiáveis, mas devemos sempre manter a porta aberta para a possibilidade de estarmos enganados. Isto é importante também nas relações entre pessoas e entre países. Num conflito, estar certo das minhas posições não me deveria impedir de ouvir as do outro.
Fala de Copérnico, mas poderia nomear Anaximandro, Aristóteles, Galileu, Newton, Einstein, Plank, Maxwell. A evolução do pensamento científico é uma reação à ‘verdade’ anterior?
Sim, mas isso não significa que o saber não seja cumulativo. Nós aprendemos com o passado. Claro que hoje sabemos mais do que há 100 anos, e há 100 anos conhecia-se mais do que há 500. Ao mudar um ponto de vista, não deitamos fora tudo o que aprendemos, só alguns aspetos. Isso é a vida: em crianças percebemos o mundo
limitadamente, depois alargamos essa visão. Nos tempos antigos, pensava-se que a Terra era plana. Depois veio alguém e disse, ‘isso está errado, a Terra é redonda’. Institui-se a ideia de que a Terra é redonda e que tudo se move em torno dela. Copérnico descobre que, afinal, ela gira à volta do sol. Mas continua a ser redonda, não se volta à ideia da Terra plana. Não se volta para trás.
Salta-se para a frente?
O progresso na ciência é real. Contudo, é um erro pensar que nos limitamos a acrescentar coisas novas a um corpo fixo de conhecimento. Para o fazer, é preciso deitar fora algumas peças do passado. Também é errado pensar que estamos sempre a substituir uma fotografia por outra. Diria que a ciência combina três ações: reconstruir, mudar peças e acrescentar. E não há dúvidas de que o conhecimento aumenta.
Quanto tempo leva a Humanidade para compreender uma nova conceção do mundo?
É um longo processo, que nunca acaba. Os homens são apegados às suas ideias, mas são também muito flexíveis, mais flexíveis do que a maior parte dos animais. Somos muito bons a aprender. E a ciência é um diálogo contínuo, não uma sucessão de grandes mudanças. É mais uma sequência de mudanças pequenas e constantes, de pequenos elementos que vão sendo aprendidos e abandonados, até se chegar a um ponto em que se evolui claramente — a mecânica quântica foi um deles, ou o momento em que Einstein nos fez repensar as noções de tempo e de espaço. Mas Einstein não caiu do céu, houve degraus prévios de conhecimento.
As duas grandes teorias da Física moderna — a teoria da relatividade geral e a mecânica quântica — parecem ter conduzido a um impasse. Elas não ‘conversam’ entre si.
São duas formas diferentes de pensar o mundo, que assentam em noções distintas. A teoria da relatividade geral diz que vivemos num espaço e num tempo que não é fixo, que se curva e estica. Há equações que o descrevem. Esta teoria está na origem da gravidade, da expansão do universo e de muitos outros fenómenos. A mecânica quântica não tem isto em consideração. Assume que há um espaço e um tempo fixos, e que há fenómenos quânticos ‘saltitantes’ ou disruptivos, que constituem a base do funcionamento dos átomos e da matéria. Então, a mecânica quântica tem esta ‘desquantização’ num espaço fixo, e a relatividade geral tem um espaço curvo no qual tudo é contínuo. E se, a respeito destes dois aspetos da realidade, alguém perguntar qual é a história toda? Bom, isso não é fácil, porque parece haver uma contradição. Mas não há. Einstein morreu a tentar explicar este problema e eu passei a vida a estudá-lo. E hoje existem teorias que tentam conciliar as duas visões. Há teorias, ideias e equações. O que falta é testá-las.
São especulativas?
Sim, são tentativas. Em ciência, não basta ter uma ideia, há que testar. Porque uma boa ideia pode estar errada. Existe esta tensão em que uma boa ideia que parece funcionar muito bem não resulta na realidade. E aí temos de admitir que escolhemos o caminho errado.
Como físico, entregou-se ao desafio de conciliar as duas teorias. Que tipo de impulso intelectual é necessário para ter este objetivo de vida?
Sabe, é uma questão de amor. Aos 20 anos, estudei estas teorias e adorei-as. Eram fantásticas, bonitas. Quis mergulhar ainda mais nelas e descobri que existia este problema, pelo qual fiquei totalmente apaixonado. Sabia que era algo enorme, mas quando és jovem isso não interessa, pensa-se que não faz mal passar a vida toda a fazer uma única tarefa. Claro que poderia ter ganhado a vida de outro modo, aspirado a ter um salário. Mas era um romântico e pensei: “Amo este problema, vou tentar uma solução.” É a mesma razão por que alguns se tornam músicos — porque amam a música. Fui sempre muito curioso, e ainda sou. Gostaria de ler todos os livros possíveis, tenho tantos que não os consigo ler. Há pessoas que se focam num detalhe, que estudam um tipo particular de formigas. E depois há pessoas como eu, que são o exato oposto. Não ligo aos detalhes, quero é ver como o mundo funciona.
É preciso ser-se quase obsessivo para perseguir algo a vida toda, certo?
Sou um pouco obsessivo. Mas há muitas atividades que requerem o impulso da obsessão. É uma forma de viver. No meu caso, é necessário ter-se algumas competências específicas, como ser-se bom a matemática e cálculo, e ter uma espécie de facilidade para pensar em termos matemáticos. Claro que isso não é suficiente. A intuição joga um papel fundamental.
E a imaginação?
Também. O espaço curvo não é apenas uma equação, mas algo visual, que desenho na minha mente. A mecânica quântica salta, vejo-a a saltar, não é uma equação qualquer.
Então, a ciência requer imaginação, habilidade matemática e capacidade de aprendizagem. Temos de conhecer a literatura científica, o que cada um fez, a que teorias chegou, porque é que não funcionaram neste ou naquele contexto.
É o autor da teoria da gravidade quântica em laços [loop quantum gravity], que nasceu em 1987. Lembra-se desse início? Da sensação de descoberta?
Lembro-me muito bem. Aconteceu-me duas vezes na vida, e foi muito bonito. Eu era novo, desconhecido. E o que fazia basicamente era ir passar temporadas com cientistas. Numa dessas viagens, fui à Universidade de Yale para ver [o físico] Lee Smolin, que era uns anos mais velho do que eu e publicara estudos muito interessantes. Ficámos amigos quase de imediato, o que para mim foi muito importante, pois sem esta amizade não sei o que me teria acontecido. Repare, tinha acabado de me separar da minha namorada, andava desesperado. E estive quase para cancelar a ida a Yale. Mas era demasiado tarde para isso e acabei por ir. Lee recebeu-me, começámos a conversar, mas eu estava a leste. Invadiu-me uma grande tristeza e Lee viu-me as lágrimas nos olhos. Perguntou-me o que se passava, contei-lhe. E ele, do nada, convidou-me para ir velejar. Contou-me tudo sobre a sua própria separação, também recente. Estávamos os dois a velejar num pequeno barco, no oceano, a falar como amigos — como os homens fazem quando têm problemas com mulheres. Mais tarde, começámos a trabalhar. E poucos dias depois fui ao seu gabinete e disse-lhe: “Escreveste esta equação, mas porque não olhas para ela desta forma?” De repente, tudo começou a fazer sentido. Estávamos tão felizes, tão entusiasmados. Passámos várias semanas a verificar a teoria, e imediatamente soubemos que era importante.
Sabiam que tinham dado um salto.
Lembro-me de estarmos a atravessar a rua e pararmos de repente, porque um carro vinha a acelerar. Meio a brincar dissemos: “Meu deus, se nos matarem agora, tudo será perdido.” Tínhamos a visão de que talvez daqui a 30 anos alguém se viesse a debruçar
sobre estas ideias. E hoje há centenas de pessoas a trabalhar nelas. Ainda nessa altura, começámos logo a dar palestras nos EUA, em Londres, na Índia. Foi um momento incrível, que se repetiu dez anos mais tarde, também com Lee. Ele estava de visita a Itália, e descobrimos as propriedades matemáticas dos grãos do espaço, o quantum do espaço — as peças individuais que o compõem, uma vez que o espaço é granular.
Imagine uma coisa que não interagisse com nada, o que seria? Se não a sentimos nem a vemos, se nada interage com ela, o que é? É como se não existisse. Ser é, em essência, interagir”
De um modo resumido e simplista, a sua descoberta é a de que o mundo das coisas existentes é o mundo das interações possíveis?
Sim, é uma forma de o dizer. Tenho trabalhado sobre vários aspetos dos fundamentos da Física, e a gravidade quântica é um deles. Mas também sobre as lacunas da própria
mecânica quântica. Aquilo que referiu é a ideia central do meu trabalho: nós percebemos o mundo não em termos de objetos separados — estes óculos, este microfone, aquele candeeiro —, mas em termos de relações. Um átomo não é um átomo em si mesmo, é um modo de interação com o resto. E isto a todos os níveis. Porque chamamos óculos aos óculos? Porque os usamos para ver. Então, são óculos na sua relação connosco. Em si mesmos, não seriam óculos — seriam uma peça de… qualquer coisa. Mas mesmo ‘qualquer coisa’, do ponto de vista físico, é um conjunto de interações com o resto.
É interessante, porque a Filosofia tem vindo a perguntar como seriam as coisas em si mesmas. O que é esta caneta ou estes óculos são quando não os estamos a ver.
Acho que já demos um passo em frente: não somos especiais. Fui um filho único, sem irmãos, cresci sozinho com os meus pais, pensava que era o centro do mundo. Levou-me mais tempo do que aos outros compreender que afinal não o era. Esta é uma conclusão a que todos chegamos a dada altura: não somos o centro do mundo, há outras pessoas como nós. Você vê esta caneta, mas depois apercebe-se de que eu também a vejo. Claro que não temos a certeza de que ambos a vejamos da mesma maneira. A caneta manifesta-se-me a mim, de certo modo, mas também se manifesta a outras coisas, que não são humanas. Se a caneta bate na pedra, a pedra ‘sente’ a caneta. As coisas existem em relação com as outras, mas não necessariamente com a nossa mente ou connosco. Não faz muito sentido para nós o que seja a caneta em si mesma, quando não se nos manifesta. Imagine que houvesse uma coisa que não interagisse com nada, o que seria? Se não a sentimos nem a vemos, se nada interage com ela, o que é? É como se não existisse. Ser é, em essência, interagir.
A teoria física que trabalha desmente a fluidez que sentimos na experiência com o mundo. Não há fluidez, a realidade é granular.
Esta é outra descoberta central do trabalho que desenvolvi com Lee Smolin: a granularidade do espaço. Mas a descoberta desse espaço granular vem do século XIX. As coisas são formadas por átomos. Onde vemos um pedaço de metal ou de vidro suave e contínuo, sabemos que, se nos aproximarmos muito, existem apenas átomos. Portanto, é granular como a areia — de grãos ínfimos. Isto já era conhecido. Quando começamos a estudar a gravidade quântica, a pergunta era: qual é a propriedade quântica do espaço? E o que descobrimos é que o espaço em si mesmo é granular. Não vivemos num espaço contínuo, mas num espaço feito de peças muitíssimo pequenas, e é possível calcular o tamanho e as propriedades destas peças.
Fala do espaço, mas escreveu dois livros sobre o tempo. O que quer dizer quando diz que o tempo não existe? Como podemos conceber isto?
Não é fácil de explicar, mas vou tentar. Temos uma ideia muito clara do tempo, certo? É aquela coisa que passa, que é medida pelos relógios. Todos temos de estar no mesmo tempo, de viver no presente. Esta ideia está errada. Sabemos que acontecem fenómenos estranhos quando as coisas se movem muito depressa. Por exemplo, se alguém se deslocar num avião muito veloz e regressar num dia, pode encontrar envelhecidos os que ficaram. Tem crianças?
Sim, duas filhas.
Então, imagine que vai numa viagem e volta no que para si corresponde a um mês depois. E encontra as suas filhas mais velhas do que a mãe. Isto é perfeitamente possível, do ponto de vista físico. Acontece que não temos aviões ou naves espaciais rápidas o suficiente para o concretizar. Mas sabemos que é assim que funciona. Portanto, o tempo é diferente do que pensamos. Pode ser mais veloz para uma pessoa e mais lento para a outra, dependendo de como se movem e para onde vão. E tudo isso pode ser calculado com precisão. Todas as discrepâncias são mensuráveis. Claro que, em geral, as velocidades normais apresentam pequenas diferenças temporais. Uma das ideias erradas é que o tempo passa por si mesmo, e de que as coisas acontecem no tempo. Não há tempo em si mesmo: há coisas a acontecer, a mover-se. Quando falamos no tempo, falamos da mudança das coisas. É dia, depois noite, o relógio move-se, nós nos movemos, a chuva cai. Falamos de acontecimentos. O tempo resume-se a isso — se nada acontecesse, não haveria tempo. A única realidade do tempo é como umas coisas se passam em relação às outras.
Então, o tempo percebido e o tempo físico são diferentes.
Nós temos uma ideia muito rica do tempo, mas isso não é física, isso é a memória. As rochas não têm memória do passado. As pedras não antecipam o futuro. Para um relógio, o tempo é diferente do que para nós. Para nós, o tempo é a narrativa do que aconteceu antes e o que esperamos ou queremos que aconteça.
É uma sequência?
Sim, mas a sequência só existe na nossa cabeça. É a memória que ativa este sentido de tempo fluido e de linha temporal.
Esta ideia revolucionária de que o tempo e o espaço são relacionais, de que ser é interagir, não tem muito de política?
A mecânica do pensamento a partir da qual percebemos a realidade em termos de relações deveria ajudar-nos a compreender melhor a política, a nossa vida em comum, a organização do mundo. Isto significa, simplesmente, que um país é mais forte se cultivar relações mais sólidas com outros. Tudo o que a espécie humana atingiu, fê-lo a colaborar. Nenhuma entidade constrói nada sozinha. A Humanidade é um imenso esforço colaborativo. Iniciámos esta conversa a falar sobre a guerra, e a guerra é o romper-se das relações. É colocar o individual à frente da colaboração. A Rússia tem o gás de que nós precisamos. E precisa dos chips europeus para os seus computadores. Então, porquê matarmo-nos uns aos outros?
No fundo, nada pode ser se estiver isolado. Nem em termos políticos, nem físicos, nem filosóficos.
O mundo existe somente pela sua interconexão. Se tentarmos perceber o sentido do mundo a descrever, uma a uma, cada coisa, não o compreendemos. Percebemos os objetos através da forma como interagem entre si — um objeto nada mais é do que as suas interações. E o mesmo se passa connosco ou com qualquer outra realidade. Na verdade, não se trata de estabelecer se a realidade existe se não estivermos lá. A realidade está lá, continua através das reações que as várias peças do universo têm em relação às outras.
Num dos seus livros refere que a ciência é reconstruir o barco enquanto se navega dentro dele. Temos agora de reconstruir a nossa relação com o planeta inseridos num tipo de sociedade que o destrói. Como se sai disto?
Do mesmo modo que não tomamos o conhecimento como algo garantido, não deveríamos pensar que esta organização da sociedade durará para sempre. Este mundo não é o único possível. O mundo tem vindo a mudar constantemente. Portanto, não precisamos de estar encurralados nesta organização social. Aqueles que dizem que esta é a única forma de viver são aqueles que tiram uma vantagem particular dela. Porém, a espécie humana enfrenta problemas sérios. A crise ecológica é extremamente provável e um dos aspetos nefastos desta guerra na Europa é ter desviado a atenção dos cidadãos daquilo que deveria ser a sua preocupação central.
Como chegamos a este ponto de rutura entre o mundo ‘natural’ e o social? É uma distinção clássica, mas artificial.
Sim, é completamente artificial e filosoficamente errada. Porque somos parte da natureza, um dos muitos elementos e processos que existem nela, como a explosão de uma estrela. A biologia é um fenómeno como outros, assim como a espécie humana. Graças à capacidade da nossa mente, construímos um mundo social e adquirimos conhecimentos, e é a partir deles que interagimos com o mundo natural. Então, prevalece o sentido de que, sendo parte da natureza, tudo o que dela sabemos faz parte da nossa cultura. E esquecemos que somos pedaços da natureza, como os pássaros, ou como uma pedra a cair de uma montanha. Esta separação entre as coisas humanas ou sociais e a natureza remonta aos tempos antigos. Na cultura ocidental, a dada altura surgiu a ideia da existência de uma esfera espiritual separada da esfera material. O que foi um erro, porque o mundo espiritual é um produto do material. A húbris [do grego, orgulho] da espécie humana tornou-se muito poderosa: modificámos o planeta, mas é nele que vivemos, e estamos a destruir a nossa própria casa. E é precisamente usando o nosso conhecimento que podemos corrigir a situação. Civilizações anteriores à nossa viveram crises ecológicas horríveis que não controlaram porque não tinham conhecimentos. Os maias colapsaram porque destruíram a floresta e a sua própria economia, e não se aperceberam a tempo porque não possuíam as ferramentas de previsão.
E nós temos.
Temos algumas ferramentas, não sabemos se serão suficientes. Há momentos em que sou muito pessimista.
Mas não parece.
Temo uma escalada do conflito entre superpotências. Há armas nucleares envolvidas. Repare, a Rússia e a Ucrânia produzem para um quarto da Humanidade. Há uma imensa quantidade de trigo nesses países que não irá ser vendido ou não será cultivado. Vai morrer gente em África por isso. Se as coisas correrem mal, Putin usará a bomba nuclear — não é impossível, estamos perto disso. A sociedade não é estável, as civilizações colapsam. Em dez anos, isso pode acontecer connosco. Então, deveríamos já tomar outra direção. Essa direção é colaborar. Falar com os russos, com os chineses. Não deixar de falar. É assim que vejo o mundo.
Persistir, portanto. Tem feito isso sempre. Posso perguntar em que ponto está hoje a sua teoria?
A teoria está em boa forma, o problema é testá-la. É nisso que me tenho concentrado: observar algo no universo a partir do qual se possa estabelecer se a teoria está certa ou não. E o melhor cenário é o dos buracos negros. O universo está cheio deles — o que não se sabia há 20 anos. Um buraco negro não vive para sempre, encolhe-se e evapora-se. E ninguém sabe o que se passa no final desse encolhimento. A teoria da gravidade quântica em laços permite calcular o que ocorre no fim da vida dos buracos negros. Parece haver alguns que, ao acabarem a sua vida, se tornam aquilo a que chamamos ‘buracos brancos’. Se os astrónomos conseguirem prová-lo, isto confirmaria indiretamente a minha teoria. Espero que isso aconteça antes de eu morrer. Seria muito bom.